Excelentíssima Senhora Doutora Juíza de
Direito da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Várzea Paulista
Scire legis non hoc est verba
earum tenere, sed vim ac potestatem (“Conhecer a lei não é conhecer a letra da
lei, mas sua força e majestade”) [Celso]
O
Ministério Público do Estado de São
Paulo, representado pelo Promotor de Justiça que esta subscreve, no uso de
suas atribuições, com fundamento nos artigos 129 inciso III, 205 e 227 da
Constituição Federal e nos artigos 4º e 53 da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA), vem respeitosamente perante Vossa Excelência,
promover
AÇÃO
CIVIL PÚBLICA
com pedido de antecipação dos efeitos da
tutela
contra
o Estado de São Paulo,
pessoa jurídica de direito público interno, representada pelo Exmo. Senhor
Governador do Estado, com sede no Palácio
dos Bandeirantes, Avenida Morumbi, 4500, São Paulo – Capital, e contra o
Município de Várzea Paulista, pessoa
jurídica de direito público interno, representada pelo Exmo. Senhor Prefeito
Municipal, com sede no Paço Municipal,
Avenida Fernão Dias Paes Leme, 284, Município e Comarca de Várzea Paulista, pelos motivos de fato e de
direito a seguir expostos.
1
- DOS FATOS
1.1
– Do sistema educacional adotado
O
Estado de São Paulo, a partir do ano
de 1998, e o Município de Várzea
Paulista, a partir do ano de 2009, adotaram, em seus sistemas educacionais
relativos ao ensino fundamental, o chamado “Programa de Progressão Continuada”,
que elimina a retenção de alunos, salvo nas hipóteses de freqüência inferior à
obrigatória (75%).
Com
tal programa, deixou de ser requisito para promoção às séries subseqüentes a
comprovação, pelo aluno, da absorção do conteúdo programático mínimo.
Em
que pese ter aludido programa defensores, que sustentam ser vantajoso no
combate à evasão escolar e à exclusão social, fato é que, da forma como foi implantado e vem sendo executado, tem sido
extremamente danoso à Infância e Juventude.
1.2 – Dos diversos estudos demonstrando a ineficácia
do modelo
Diversos
educadores têm se dedicado à análise do tema, e muitos estudos têm sido
produzidos, apontando que a forma como vem sendo aplicada a progressão
continuada – no Brasil, reduzida a mera
promoção automática – tem
causado danos ao nível de ensino e ao ambiente escolar.
Em
recentíssima Tese de Doutorado [VIÉGAS, Lygia de Sousa, Progressão continuada em uma
perspectiva crítica em Psicologia Escolar: história, discurso oficial e vida
diária escolar, São Paulo,
2007, mimeo] defendida junto ao Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo, a pesquisadora Lygia de Sousa Viegas apresentou suas conclusões
após acompanhar, por um ano, a vida escolar diária de duas classes da 4ª série
do 1º grau em uma escola da região central da cidade de São Paulo. O trabalho
de campo incluiu acompanhamento da dinâmica das salas de aula, entrevistas com
alunos, seus pais e professores. Na obra, anotou a pesquisadora ter observado a ocorrência de inúmeros alunos que,
embora freqüentassem o ambiente escolar, não se beneficiavam da
escolarização. Apontou, ainda, que com
a progressão continuada “há uma queda na
qualidade do ensino oferecido, quando o disciplinamento dos alunos, com
contornos humilhantes, passar a ocupar o lugar vazio dos conteúdos escolares” (a
conclusão consta do resumo ou abstract).
Valiosas
ponderações são extraídas da aludida tese, seja no que tange à disparidade
entre o discurso oficial que justificou a implementação e o que de fato ocorre
em sala de aula, seja no que tange ao posicionamento dos professores, seja no
que tange ao aprendizado pelos alunos. Pede-se vênia, pois, para transcrever
excertos significativos:
“Uma das principais
promessas feitas com a implantação da Progressão Continuada foi a de que este
programa de governo conquistaria a superação da exclusão que ocorria no
interior da escola, até então representada pelo alto índice de reprovações
escolares. Assim, é fundamental à presente Tese analisar se de fato houve esse
enfrentamento no dia-a-dia da escola, por meio da análise minuciosa de alguns
casos específicos de alunos.
De fato, ao longo
da pesquisa de campo, foi possível constatar o que foi discutido anteriormente:
o problema da exclusão na
escola não foi superado, mas apenas
sutilizado por estatísticas educacionais que camuflam a verdadeira realidade
das escolas. Guimarães (2001), que analisou
a prática profissional de duas professoras em tempos de Progressão Continuada,
aponta para o mesmo fenômeno, autorizando-se a afirmar que
o fracasso escolar
deixa de existir estatisticamente, porém essa ‘melhoria’ não contempla a
qualidade de ensino – utopia perseguida na educação brasileira há bastante
tempo – uma vez que vem ocorrendo a
progressão dos alunos entre as séries sem as mínimas condições para
freqüentarem as séries seguintes (p. 158).
De modo semelhante,
Steinvascher (2003) afirma o óbvio: ‘o acesso e a permanência de todos na
escola não representa, automaticamente, melhoria na qualidade do ensino.
Dependendo da forma como a medida for implantada pode-se atingir a ‘igualdade
de oportunidades’ de acesso e permanência, sem a garantia da aprendizagem
significativa por todos’ (p. 85). Nesse mesmo sentido, Bertagna (2003) conclui,
apoiando-se em Bourdieu, que a Progressão Continuada dá continuidade ao
mecanismo de ‘exclusão branda’ no interior da escola,
à medida que os
alunos permanecem no sistema, mas sem possibilidades reais de sucesso, ao mesmo
tempo em que constroem justificativas para seu eventual fracasso, pautadas
principalmente na crença da incapacidade dos mesmos em ter sucesso em um
sistema que lhes garante acesso e permanência, e que dissimuladamente
empurra-os para a exclusão e, portanto, para sua condição social original (p. 438).
De fato, na
presente pesquisa, observei inúmeras
situações nas quais parte dos alunos demonstrou estar freqüentando a
escola, mas sem se beneficiar do processo de escolarização: alunos que não sabiam ler e escrever a
contento; alunos estigmatizados, seja pela condição de pobreza, seja pelo
fato de a estrutura familiar não representar o modelo convencional vigente no
ideário social” [p.
172/173, negritos nossos].
E
prossegue, mais adiante:
“(...) a exclusão
que ocorre no interior da escola estadual paulista foi superada com a
implantação da progressão continuada? Certamente, por tudo que foi exposto até
o momento, fica explícito que a resposta para esta questão é que não! Ao
contrário, o problema persiste, embora invisível às estatísticas educacionais
e, portanto, para quem não tem um contato direto com a realidade da escola
pública nesse Estado” [p.
202].
Acrescenta
ainda que:
“Entendo que o
‘simples’ fato de a escola não mais socializar conteúdos importantes para a
formação de alunos, associado à centralidade do disciplinamento, por si só, já
é suficiente para questionar a pretensa formação de cidadãos no bojo da
Progressão Continuada” [p.
210].
E arremata, no tópico
“Considerações Finais”:
“(...) a pesquisa
realizada na escola, rompendo com essa lógica hegemônica, colocou no centro a fala
de alunos e seus familiares, as quais desvelam uma profunda preocupação com a
qualidade do ensino oferecido, representado na defesa da reprovação escolar, ou
seja, a maioria dos alunos e familiares posicionou-se de forma contrária à
implantação da Progressão Continuada, contrariando não apenas a suposição de
professores, mas, sobretudo, o consenso imposto em torno dessa proposta pelo
discurso oficial. É possível analisar criticamente a defesa da reprovação, entendendo
que pais e alunos desejam mais uma escola que ensina que uma escola que
reprova. Quando as opções vislumbradas
são ‘passar sem aprender’ ou ‘reprovar para aprender’, fica compreensível a
escolha pela segunda possibilidade.
(...)
O que se observou
na escola acompanhada na presente Tese de Doutoramento em nada difere do que há
muito vem sendo apontado em relação à rede pública estadual paulista. Repete-se
a mesma preocupação econômica na construção de políticas educacionais,
repete-se o mesmo olhar preconceituoso em relação aos professores, alunos e
familiares, repete-se o mesmo autoritarismo na implantação de políticas de
governo. Repetem-se os mesmos dilemas, as mesmas dificuldades, as mesmas
queixas no interior da escola, Repete-se o mesmo funcionamento escolar, calcado
em tarefas mecânicas e pouco interessantes. Repete-se a culpabilização dos
alunos e famílias pelas dificuldades de escolarização, muitas vezes sustentadas
em prontuários escolares que repetem o que sempre se disse sobre eles. A única coisa que não repete é o aluno no
final do ano letivo”[p.
216 e 218, grifamos].
A
mesma pesquisadora destacava, já em 2003, em entrevista concedida à Agência USP
de Notícias (doc 2), que
"Não
foram dados às escolas elementos para que a Progressão fosse implementada por
completo. A Lei previa acompanhamento pedagógico e psicológico às crianças que
estivessem com dificuldade. Elas passariam de ano mas seus problemas seriam
trabalhados" (...) Infelizmente, o que ficou foi mesmo a 'aprovação
automática', como foi apelidada. (...) Os índices de aprovação escolar dos
alunos aumentaram, mas o problema não se alterou. Ele foi mascarado (...)
Professores especialistas, formados em História ou Matemática, não sabiam lidar
com alunos que estavam chegando ao ciclo II não-alfabetizados. (...) Antes, o
dado de que 30% das crianças reprovavam o ano era um sinal de que a escola
estava fracassando. Hoje, os números não mostram isso claramente".
(fonte:http://www.usp.br/agen/bols/2003/rede1140.htm).
Na mesma linha as conclusões do pesquisador Sebastião
Aparecido Ferreira, em Dissertação de Mestrado [FERREIRA, Sebastião Aparecido, Inclusão Social, Progressão Continuada, e Ciclos
no Estado de São Paulo: Implicações e Contradições (1998-2002), São Carlos,
2004, mimeo] apresentada à Universidade Federal de São Carlos.
No
minucioso trabalho, realizado a partir de pesquisa empírica de campo em uma
escola da periferia do Município de Piracicaba/SP, são encontrados trechos de
entrevistas com alunos, altamente reveladores do que efetivamente vem ocorrendo
nas escolas (p. 82 e 102):
Os alunos
estão adorando isso porque é mais fácil para eles passarem sem saber nada, vão
assim sem aprender e mesmo assim eles vão tirar o diploma deles sem saber nada
(aluna n. 10).
(...) muitos
alunos estão passando sem saber nada (aluno n. 1).
Uns sem
aprender, que nem a minha irmã: ela está na 7ª série. Ela mal sabe escrever.
Ela sabe ler, mas mal sabe escrever (aluna n. 5)
Na minha
classe têm muitos... 1º colegial agora, não faz nada, nunca fez nada, só que
tem uns que não sabem somar, subtrair, não sabem nada e estão no 1º colegial
(aluno n. 4)
(...) aquele
negócio lá de progressão continuada passa sem nada, sem saber ler, sem saber
escrever (aluna n. 7).
Pondera o mencionado pesquisador que:
“Diante de
tudo isso, pudemos perceber que os estudantes vivem um dilema: estão gostando
das facilidades encontradas na escola, mas, ao mesmo tempo, sentem que estão
saindo dela sem base nenhuma. Como
dizem, estão ‘passando’ sem saber. Na última entrevista, a coletiva, com aquele
grupo de estudantes, agora já cursando o 1º ano do ensino médio, alguns
lamentaram que a sua cidadania não estava sendo respeitada, pois o direito de
aprender lhes havia sido negado. Isso, de qualquer modo, contraria o discurso
oficial que colocava os ciclos com progressão continuada como instrumento de
inclusão social destes estudantes de camadas populares. Como incluir alguém que após oito anos de escola mal sabe escrever
algumas palavras e fazer algumas operações? Foi possível perceber, através
das entrevistas, que, pelo menos os concluintes de uma 8ª série de uma escola
periférica de Piracicaba/SP, estavam
terminando o segundo ciclo de estudos com uma certeza cruel: não se
consideravam preparados para o mercado de trabalho e tampouco para a vida. Os
seus direitos de cidadãos, como acesso à escola e um alto índice de desempenho,
não haviam sido garantidos pelo poder público” [p. 111, grifo
nosso].
No mesmo sentido, também a pesquisadora Rosana Prado Biani
concluiu que, da forma em que implementada, a Progressão Continuada mantém a
exclusão:
“(...) da
forma como se concretizou, a Progressão Continuada não rompeu com os mecanismos
e processos de seleção, fracasso e exclusão, levando a escola a manter o seu
caráter seletivo e excludente (...) a exclusão, antes exterior à escola pelo
não ingresso, repetência e evasão, acontece agora com a criança na escola, pela
pouca qualidade de aprendizagem” [BIANI,
Rosana Prado, A Progressão continuada
rompeu com mecanismos de exclusão, Dissertação de Mestrado apresentada à
Faculdade de Educação da UNICAMP, 2007, mimeo, xi].
Por sua vez, no que tange ao suposto
efeito de baixa auto-estima em crianças com a reprovação/repetência – o que
seria superado com a progressão automática - em Tese de Doutorado [PASSERI,
Silvia Maria Riceto Ronchim, O
Autoconceito e as dificuldades de aprendizagem no regime de progressão
continuada, Campinas, 2003, mimeo, p. 133] apresentada à Faculdade de
Educação da UNICAMP, assinalou a pesquisadora Silvia Maria Riceto Ronchim
Passeri que:
“Em relação
ao Regime de Progressão Continuada no Ensino fundamental concluímos, neste
nosso estudo, que o fato de não haver reprovação nesse sistema de ensino, não
é, a nosso ver, garantia de que as crianças terão elevado índice de
autoconceito. Entendemos que o autoconceito da criança está relacionado com a
sua capacidade de aprender ou de não aprender e a reprovação é apenas conseqüência”.
De outra banda, pesquisa realizada em
2007 junto a professores da rede estadual de ensino (doc. 6) revelou que, para
76% (setenta e seis por cento) dos entrevistados, o regime de progressão
continuada, tal como adotado, contribui
para o aumento da violência no ambiente escolar. (fonte: http://www.apeoesp.org.br/especiais/progressao_violencia.html).
A
questão também não passou despercebida à grande imprensa, tal como se observa
no artigo “A reprovação do Ensino
Público”, veiculado no Jornal “O Estado de São Paulo”, edição de 9 de março
de 2007 (doc. 7):
A reprovação do ensino público
O debate em torno do regime
de “progressão continuada” na rede pública de ensino básico do Estado de São
Paulo não poderia ter vindo em melhor hora. Esse sistema, que foi adotado na
década de 90 pelo governo Mário Covas, prevê dois ciclos de quatro anos, ao
final dos quais os alunos são avaliados e podem ser reprovados. Nos demais
anos, eles são aprovados automaticamente, independentemente de seu desempenho
escolar.
Na época, os especialistas
criticaram a iniciativa, alegando que a “progressão continuada” foi concebida
com objetivos orçamentários, sem levar em conta critérios pedagógicos. Na
medida em que a aprovação automática “descongestiona” as primeiras séries do
ensino fundamental, o governo não precisaria investir na construção de mais
salas de aula. O problema é que, se essa estratégia propiciou maior
flexibilidade orçamentária aos dirigentes estaduais, do ponto de vista
pedagógico os resultados foram desastrosos.
As conseqüências desse
equívoco podem ser medidas pelo último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Realizado anualmente, o teste é voluntário e é aplicado a estudantes da 3ª
série, que podem avaliar a qualidade da formação obtida ao longo do curso e
utilizar os pontos nos vestibulares. As notas das escolas são obtidas a partir
das médias aritméticas das notas dos alunos, numa prova composta por um teste
de conhecimentos gerais e por uma redação.
Os resultados do último Enem
revelaram que, com exceção de 11 escolas técnicas e de 1 escola mantida pela
Faculdade de Pedagogia da USP para treinamento de seus alunos, os 621 colégios
estaduais da cidade de São Paulo obtiveram uma nota média de acertos abaixo de
50 pontos. A média geral dessas escolas foi de 38,4, o que atesta a péssima
qualidade do ensino por elas ministrado. Em outras palavras, a rede pública
estadual de ensino médio foi reprovada. Embora o pior desempenho tenha sido
registrado entre as escolas localizadas nos bairros mais pobres e distantes,
como Grajaú, Parelheiros, Socorro, Marsillac e Jardim Ângela, os colégios
estaduais tradicionais, situados nas áreas mais nobres da cidade, como Morumbi,
Moema e Jardim Paulista, também tiveram um rendimento medíocre.
Como era esperado, os
colégios particulares, que contabilizam cerca de 3.300 horas-aula a mais que as
escolas públicas, têm professores mais qualificados e motivados, dispõem de
bibliotecas atualizadas e contam com laboratórios bem equipados, obtiveram um
desempenho superior. Paralelamente às aulas regulares, as escolas melhor
classificadas no ranking do Enem têm atividades extra-curriculares,
laboratórios de redação, aulas de atualidade a partir da leitura de jornais,
plantões de dúvidas e um rigoroso sistema de avaliação anual. Ou seja, os
colégios mais eficientes são aqueles que reprovam a cada série cursada pelos
alunos.
As escolas pior
classificadas - as da rede pública estadual - são aquelas que, além de
carecerem de instalações físicas adequadas e de professores motivados, submetem
seus estudantes a somente duas provas ao longo do curso. Com isso, estudantes
com bom aproveitamento são colocados em salas superlotadas ao lado de alunos
que não conseguem acompanhar as aulas e, mesmo assim, são aprovados.
“Incluiu-se o aluno nessa escola sem dar a ele o domínio de conteúdos
elementares”, diz o professor Demerval Saviano, da Faculdade de Educação da
Unicamp. Segundo Saviano, o regime de aprovação automática que vem sendo
adotado desde o governo Covas ajudou a melhorar as estatísticas da Secretaria
da Educação, mas agravou o problema da má qualidade do ensino público. “O
resultado da progressão continuada é o que está aí: alunos saem da 8ª série mal
sabendo ler e escrever e entram no ensino médio sem condições de acompanhar as
aulas por falta de conhecimentos básicos”, conclui.
Após o último Enem, a
Secretaria da Educação anunciou que manterá o regime da “progressão
continuada”, mas os alunos passarão por quatro avaliações. Já é um avanço. Mas
essa medida só produzirá efeitos positivos se o governo também investir em
projetos pedagógicos, melhorar as instalações físicas dos colégios estaduais,
reduzir o número de alunos por sala e criar programas mais eficientes de
incentivo na formação de professores.
“O
Estado de São Paulo”, 9 de Março de 2007, Notas e Informações
De
fato, não poderia mesmo ser diferente.
Na forma em que adotado, o programa ou
modelo passa a exigir do aluno, apenas e tão somente, que tenha freqüência
escolar mínima, sem comprometimento com a absorção de conteúdos.
E,
em assim sendo, inegavelmente se revela incentivo à indisciplina em sala de
aula – quando não agressão contra professores e alunos – além de ser fator de
desestímulo ao estudo – o aluno sabe, já no início do ano, que o que quer que
faça, desde que freqüente as aulas (e ainda que nada aprenda) será aprovado ao
final.
1.3 – Do caso específico de Várzea Paulista
No
ambiente local foi possível constatar os efeitos negativos da adoção do
sistema.
Comparecendo
espontaneamente na Promotoria de Justiça, declarou a Sra. XXXXX, em 23 de outubro de 2008, ser “madrinha” de adolescente de 13
anos de idade e por ele responsável.
Relatou
que (doc. 8):
“Ele [o
adolescente] não sabe nada, escreve bem mal e desconhece termos básicos de
linguagem. No entanto, tem passado de ano devido ao sistema de progressão
automática” (termo
anexo).
Em
atenção a ofício circular expedido pelo Ministério Público (doc. 9), diversas
escolas estaduais situadas em Várzea Paulista responderam a questionamentos
afirmando ser positivo o sistema de progressão continuada. No entanto, com a
devida vênia, limitaram-se a anexar alguns textos de alguns alunos – em regra
aqueles que obtiveram nota máxima ou próxima da máxima – e não, como havia sido solicitado no ofício do Parquet, os textos de alunos com deficiência de aprendizado (docs. 10/18).
De
qualquer forma, os Srs. Diretores da Escolas Prof. Nathanael Silva, Prof.
Oswaldo Camargo Pires e Profa. Lavínia Ribeiro Aranha (docs. 19/21), admitiram
possuírem alunos concluintes do ensino
fundamental com graves deficiências de leitura/escrita e que não absorveram os
conhecimentos básicos exigidos (Ofícios n.s 207/08, 109/2008 e 153/08).
Tome-se,
a título de exemplo, trecho de texto escrito por aluno da 8ª série de uma das
escolas locais (doc. 22):
“Estou de
convidando para pasar algos dias em
minha casa. Para você conhese a
cidade e os pontos turístico. Traga
sua família para conheser tamem vocês
vam figar em minha casa. Eu não vou
me encomodar meus filho estão com saudade. Voceis não vem aqui fas cinco anos quero saber como vai aí como é qui ta aí seu filhos sua mulher. (destaques inexistentes no
original, que ressaltam erros de grafia e/ou concordância e/ou acentuação)”.
Frisa-se que destacado este texto
por ser oriundo da única das escolas que efetivamente encaminhou ao Ministério
Público peças que apontavam deficiências dos
alunos, tendo quase todas as demais escolas, com vistas, aparentemente, a
efetuar a defesa do sistema, encaminhado cópias de duas ou três redações que
obtiveram pontuação máxima ou que não continham erros – sendo óbvio que não
representam, nem poderiam representar em escola alguma, o padrão geral.
Mas
não é só.
Como
se depreende de relatório da Fundação CASA, elaborado em procedimento em
trâmite perante a Vara da Infância e Juventude local (feito n. 233/08),
constatou-se, sobre adolescente matriculado na 7ª série, que (doc. 23):
“(...) o jovem não sabe ler e nem escrever, realiza
cópias de conteúdos com grafia regredida, compatível com as fases iniciais da aquisição da escrita. Tais dificuldades são
complicadores em atividades corriqueiras do dia a dia, como por ex. tomar um
ônibus circular, assinar o próprio nome, etc., ocorrências estas que geram sentimento de inferioridade e
vergonha, acarretando baixa auto estima” (grifamos).
Da
leitura do documento em questão se extrai que o jovem, então com 16 (dezesseis)
anos, freqüentara a Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE por
dois anos, a partir dos 11 (onze) anos, e que deveria, segundo parecer técnico,
permanecer naquela instituição. No
entanto, por determinação da genitora, passou a freqüentar escola do ciclo
regular e, sem saber ler ou escrever, e
com recomendações técnicas de freqüentar a APAE, galgou a 7ª série da rede
regular.
Já
em estudo social referente a outro jovem (doc. 24), realizado no feito 335/08,
constou declaração da genitora do adolescente no sentido de que apesar de ter
cursado até a 6ª série, “[o menor] é
quase analfabeto porque pouco sabe ler e escrever menos ainda”.
A
mesma situação foi constatada também no feito 295/08 (doc. 25), no qual, também
em estudo social, constatou-se junto à genitora de adolescente de 16
(dezesseis) anos, matriculado na 7ª série, que o jovem “escreve e lê muito mal”.
De
qualquer forma, fato é que, como ressaltado, diversos estudos têm apontado que,
se a idéia original da progressão continuada - como forma de evitar a
estigmatização do aluno reprovado e conseqüente evasão - era razoável, em nosso
país o programa foi corrompido para se transformar em mera promoção automática,
que pode ter positivos efeitos de cunho estatístico (percentual maior da
população aparentemente alfabetizada
e detentora de grau escolar mais elevado), mas tem se revelado em
desestimulante do estudo e em verdadeira maquiagem às carências do sistema
educacional.
1.4 – Dos
argumentos que são levantados em favor do sistema (inaplicabilidade à realidade brasileira e,
notadamente, à realidade varzina)
Indubitável
que o sistema de Progressão Continuada têm tido defensores, que não raro citam
experiências de sucesso realizadas em outros países, ou melhor desempenho em
testes de alunos pertencentes a grupos em que há progressão continuada em
relação àqueles em que existe a reprovação.
No entanto, não se pode descurar que o
modelo idealizado não foi integralmente
adotado em nosso país.
É
fato que, nos países que são citados dentre aqueles nos quais se obteve sucesso
com a adoção da progressão, tal não se dá como mera promoção automática, como ocorre no Brasil: todo um arcabouço de
preparação de professores, e todo um exército de profissionais de apoio (v.g.,
pedagogos, psicólogos, psico-pedagogos, etc.) acompanham os alunos muito de
perto – em regra, em salas com poucos alunos - ao que se soma o fato de
existirem, em tais países, práticas efetivas de aulas suplementares que buscam
colocar alunos com maiores dificuldades em pé-de-igualdade com os demais, além
de carga horária de aulas e atividades extra-curriculares expressivamente mais
elevada que a brasileira.
O
já mencionado pesquisador Sebastião Aparecido Ferreira, na Dissertação supra
referenciada, traz a lume dois valiosos estudos de caso, referentes à França e
à Inglaterra.
Em
relação ao sistema francês de ensino, também organizado em ciclos, esclarece
que:
“Ressaltamos também que todo esse processo atual de implantação dos
ciclos no sistema público de ensino francês efetuou-se através de uma política
de acompanhamento pedagógico voltada especialmente para o professor.
Propunha-se a prática de uma pedagogia mais individualizada, adaptada o mais
possível aos ritmos de aprendizagem e característica própria de cada criança. Objetivo
este difícil de cumprimento, pois, no Brasil, especificamente no estado de São
Paulo, ao nosso ver, na instituição escolar as crianças são acolhidas
coletivamente. Como individualizar o ensino quando se lida com grupos de 20 a
30 crianças? Como individualizar o ensino quando se tem 35 alunos nas classes
do 1º Ciclo, 40 nas de 2º Ciclo e 45 no ensino médio como determina a SEE/SP? A
inclusão escolar por si só não garante o espaço da aprendizagem de acordo com
as especificidades das diferenças humanas” [Op. cit., p. 17/18, destaques nossos].
Em
relação ao sistema inglês, refere que:
“Não existe repetência. A criança entra na escola com 5 anos e só pode
deixá-la aos 16. Os que têm problemas de aprendizado são encaminhados para
programas ou aulas de reforço. Os alunos, porém, enfrentam uma bateria de
exames que começam antes mesmo do primário e terminam com os ‘A-levels’
(níveis de ensino), para aqueles entre 17 e 19 anos. E cresce o número de
famílias que educam os filhos em casa, que hoje são 150 mil.” [Idem, ibidem, p. 21, destaques nossos].
Por
sua vez, a precariedade da estrutura na escola brasileira para implementação
das mudanças é assinalada em Tese de Doutorado [BERTAGNA, Regiane Helena, Progressão Continuada: Limites e Possibilidades, Tese de Doutorado,
UNICAMP, Campinas, 2003, mimeo, p. 445/446] da pesquisadora Regiane Helena Bertagna:
“As condições oferecidas à escola
para efetivação da proposta da progressão continuada foram escassas, como se
revelou em diferentes falas dos profissionais da escola, comprometendo as
possibilidades de implantação como já advertiram MAINARDES (2001), SOUSA (1998)
e SOUSA e ALAVARSE (2002).
Ao desestruturar “positivamente”
o sistema seriado convencional, a organização em ciclos exige maiores
investimentos financeiros e, também ações mais unificadas para garantir as
condições adequadas para a sua efetivação, tais como: materiais didáticos
diversificados, ampliação da rede física, maior tempo de permanência dos alunos
na escola, número menor de alunos nas salas de aula, medidas que oportunizem
acompanhamento de alunos que necessitam de maior tempo para apropriação dos
conteúdos, valorização dos profissionais da educação (incluindo melhores
salários), financiamento de pesquisas, implementação de consistentes projetos
de formação contínua, procedimentos de avaliação permanente dos resultados com
vistas à tomada de decisão. Há portanto, a necessidade de um compromisso
efetivo por parte dos gestores em garantir as condições adequadas e necessárias
(MAINARDES, 2001, p. 50).
FREITAS, J. C. (2000) apontou em
seu trabalho, utilizando-se das falas de professores da rede estadual de São
Paulo, as precárias condições oferecidas para implantação das mudanças 446
propostas nas escolas, sendo: a) número excessivo de aluno por classe; b) falta
de espaço físico; c) falta de materiais didático-pedagógicos; d) falta de uma
política de formação de professores; e) falhas na política de estudos de
reforço e recuperação; f) de forma global, as condições gerais da escola.
Como vemos, as condições
oferecidas para a aprendizagem nas escolas independentemente da progressão continuada,
há muitos anos estão sendo evidenciadas e denunciadas, mas pouco se vê de ação
política ou investimento para suprir tais condições sem as quais se inviabiliza
qualquer tentativa eficaz para a aprendizagem da maioria da população e as
possibilidades de inovação”.
De
outro turno, os pretensos melhores resultados, em testes, de alunos oriundos de
países que adotam o sistema da progressão automática, em relação àqueles em que
há repetência - o que teria sido, segundo defendem alguns, demonstrado por
pesquisas comparativas – merecem análise mais apurada.
Tome-se,
a título de exemplo, informação veiculada na publicação “Desafios” de outubro de
2007, consistente em artigo intitulado “O
Dilema da Repetência e da Evasão”[GARSCHAGEN, Sérgio, O dilema da
repetência e da evasão, Brasília, 2007, fonte: http://desafios2.ipea.gov.br/sites/000/17/edicoes/36/pdfs/rd36not05.pdf
- doc. 27].
Ali
se aponta resultado de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA,
consistente na comparação de pontuação obtida por alunos de 49 (quarenta e
nove) países, que se submeteram a testes de matemática. Com base nos resultados
do denominado Timms (Trends in International
Mathematics and Science Study), ter-se-ia – segundo o artigo – chegado à
conclusão de que “[os resultados]
comprovam a superioridade das notas e do aproveitamento escolar por parte dos
alunos dos países que proíbem a repetência escolar em relação tanto aos que adotam
uma proibição parcial quanto aos que adotam a política de repetição do ano
letivo com base nas notas mínimas de aprovação”.
A
pesquisa à que se refere o artigo tem seus elementos veiculados também no “Texto
para Discussão 1300” (doc. 28), disponível no site do IPEA [SOARES,
Serguei Suarez Dillon, A repetência no
contexto internacional: o que dizem os dados de avaliações das quais o Brasil
participa?, Brasília, 2007. http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/tds/td_1300.pdf
- doc. 26], no qual são analisados não
só os resultados do Timms, mas também
resultados de testes de leitura (PIRLS).
Analisando
os textos se depreende que a metodologia consistiu em dividir os países em três
grupos – quais sejam, os que adotam a progressão, os que adotam a repetência, e
um grupo intermediário – e comparar os dados das pontuações dos respectivos
alunos.
Assim
colocada a questão, uma preliminar observação do comparativo, sintetizado em
gráfico, pode levar à preliminar constatação
do pesquisador de que “Os
gráficos sugerem que os países que proíbem a repetência se encontram em situação
bem melhor que os que a permitem, ainda que de modo parcial” [SOARES, Serguei Suarez Dillon,
op. cit., p. 10].
Com
a devida vênia, porém, se tal constatação
ocorre, não há, de forma alguma, nenhum
indício quanto a haver relação de
causa e efeito entre o método (progressão ou repetência) e os resultados.
Do
próprio texto que revela a pesquisa se extrai que “como poucos países participam da avaliação, o número de observações é
pequeno, o que leva a valores de probabilidade (p-valores) que não permitem
conclusões sólidas” [Idem,
ibidem, p. 15].
Ainda
assim, extrai-se do texto a conclusão de que “os dados aqui apresentados sugerem que a adoção de políticas de
progressão continuada – entenda-se: passar por decreto – podem elevar a qualidade educacional” [Idem, ibidem, p. 15].
Uma
vez mais, com a devida vênia, não se encontra qualquer indicativo de causa e efeito entre adoção da
progressão e elevação da qualidade educacional, mas mera coincidência provocada pela composição
do grupo dos países que adotaram aquele modelo.
Senão
vejamos.
Despreze-se
o grupo híbrido, e passe-se à análise, exclusivamente, daqueles dois grupos que
se colocam em pólos opostos (progressão continuada versus repetência).
Os
integrantes do primeiro grupo (progressão) são, dentre outros, Noruega,
Finlândia, Canadá, Escócia, Inglaterra, Japão, Suécia e Austrália.
E
os do 2º grupo? Dentre outros, Gana, Botsuana, Tunísia, Irã, Egito e
Filipinas...
Assim,
da comparação de desempenho de alunos oriundos de dois grupos de países que
têm, entre si, assombrosas discrepâncias sócio-econômicas e culturais, não há
como inferir que o melhor desempenho de uns sobre os outros advenha
simplesmente da existência ou não da repetência, e não das gritantes disparidades de fundo existentes entre os integrantes de ambos os grupos.
O
que foi acima dito pode ser melhor visualizado ao observar os países em
comento, comparando seus resultados com os do demais, mas levando também em
conta os respectivos Índices de Desenvolvimento Humano – IDH (este cruzamento
de danos não foi efetivado no texto para debate, que se limita a cruzar dados
com os do PIB/per capita, sendo certo
que este último indicador não reflete
as condições sociais da população, como distribuição de renda, saneamento
básico, garantia do direito à saúde, etc., mas mera divisão de valor por número
de habitantes).
Tomando
os resultados obtidos no Timms pelos
dois grupos aludidos, observa-se, desconsiderando Taipei (que não aparece no
relatório de IDH), que dos 19 (dezenove) componentes restantes do “grupo da
progressão”, apenas um (Armênia) tem
IDH considerado médio, enquanto a esmagadora maioria – todo os demais 18 (dezoito) países – possuem IDH elevado
(doc. 29).
Em
contrapartida, no grupo que congrega países nos quais é admitida a repetência,
dos 17 (dezessete) integrantes, apenas 9
(nove) têm IDH elevado, enquanto 8 têm IDH médio.
Aprofundando
análise de dados, observa-se ainda que aquele único país do 1º grupo
(progressão) que possui IDH médio (Armênia), encontra-se na 83ª posição no
ranking de IDH. No entanto, são integrantes do outro grupo (repetência) países
com posições 102ª (Filipinas), 109ª (Indonésia), 116ª (Egito), 126ª (Botsuana)
e 142ª (Gana).
Assim, e com tão graves disparidades
entre os integrantes dos dois grupos, não há como atribuir à repetência (e não à pobreza, falta de
infra-estrutura, falta de investimentos, etc.), a menor pontuação dos alunos do
segundo grupo, nem à progressão continuada a maior pontuação do primeiro.
Ainda
em relação ao gráfico de resultados Timms,
outras ponderações podem ser feitas, a fundar conclusões diversas daquelas
constantes da pesquisa.
Os
três países melhor pontuados dentre os que adotam a progressão continuada foram
Coréia, Taipei e Japão.
Países
que - isto é público é notório - têm por traço
cultural o incentivo - não raro exagerado e por isso gerador de
problemas para a Juventude, pressionada sempre à excelência - ao estudo. Tanto
assim que aparecem com resultados altíssimos (superiores a de todos os demais),
dois outros países, situados no grupo intermediário, que apresentam grandes
semelhanças com aqueles três na questão da cultura do estudo intensivo: Hong
Kong e Cingapura.
Excluindo-se
do gráfico estes cinco países, observa-se não haver diferenças significativas
de pontuações entre os alunos da Bélgica, Estônia, Lituânia, Espanha, Sérvia,
Bulgária e Romênia – todos que admitem a repetência – e todos os demais países do grupo da progressão continuada: os
índices varam de 475 a 537 no 1º caso, e de 461 a 543 no segundo
As
menores pontuações no “grupo da repetência” só irão surgir quando se desce (na
escala comparativa) a países como Líbano, Irã, Indonésia, Egito, Filipinas, Botsuana,
Arábia Saudita e Gana, de população predominantemente pobre.
Assim,
e novamente com a devida vênia, o que é no “Texto para Discussão” referido como
espécie de “exceção” (caso da Bélgica, que apresentou bons resultados no Timms apesar de adotar a repetência), nada tem de excepcional: os bons
resultados se devem ao fato, óbvio, de ter a Bélgica excelentes condições
sócio-econômicas e culturais, com IDH igual a 0,948, ocupando nada menos que a
17ª posição no ranking.
Vale dizer,
quando são comparados – como deveria ser para prova contundente do argumento –
países de condições sócio-econômicas semelhantes, semelhantes os resultados
obtidos pelos alunos – quer haja neles a repetência, quer adotem a progressão
continuada.
Discrepâncias
efetivas só ocorrem quando se compara – indevidamente – resultados de países
africanos - ou asiáticos marcados por constantes guerras e cataclismos - com
países nórdicos!
Às
mesmas constatações se chega quando são analisados os gráficos indicativos dos
resultados em testes de leitura: pontuações semelhantes, por exemplo, e
independentemente de grupo, de países europeus com condições sócio-econômicas
próximas. A título de exemplo, Estônia, Bélgica e Espanha (do grupo que aceita
a repetência), comparados a Latvia, Noruega e Hungria (do grupo da progressão
continuada), ficando os resultados efetivamente inferiores a cargo – como não
poderia deixar de ser – de países como Marrocos e Botsuana.
Infindáveis
as digressões que poderiam ser feitas para demonstrar que outros fatores, que
não a repetência, é que determinam os melhores ou piores resultados. Basta
lembrar, apenas para citar alguns pontos, a discrepância de carga horária
escolar entre os países comparados, ou mesmo o número de filhos por casal (quanto
menor o número, maior a possibilidade de acompanhamento individual, pelos pais,
dos progressos do jovem).
Em
suma, e sem necessidade de mais aprofundados recursos estatísticos, salta aos
olhos - quer pela observação do IDH dos países comparados, quer pelo
conhecimento que, pelo senso comum, se tem das condições sociais, econômicas e
culturais de tais países – que os melhores resultados em matemática e leitura
aparecem nos países mais desenvolvidos – independentemente
de admitirem ou não a repetência – correspondendo os mais baixos resultados
justamente aos países de população mais pobre.
Um
último comparativo, retornando aos resultados do Timms: o grupo da progressão é formado por países europeus, Japão, “tigres
asiáticos”, e países ricos do Novo Mundo; já no grupo que admite a repetência,
metade dos países são africanos ou asiáticos de população pobre. Seria mesmo de
surpreender se melhores resultados fossem obtidos por este segundo grupo.
Trazendo
a questão para a realidade brasileira, fica claro que nem existe nas escolas
estaduais e municipais a estrutura - material e de pessoal - mencionada no
início deste tópico (notadamente em Município reconhecidamente carente, como
Várzea Paulista), nem se pode dizer que o nível educacional e cultural das
crianças e adolescentes é ao menos semelhante aos de mesma idade, habitantes do
continente europeu.
Ou
seja, uma vez mais se importou “solução” que nada tem que ver com a realidade
social brasileira e, mais grave, a importação foi apenas parcial - apenas no aspecto que desonerava o Estado - tendo
faltado, infelizmente, aqueles elementos que mais colaborariam para que as
crianças e adolescentes fossem educadas para o mercado de trabalho, tivessem
pleno desenvolvimento e alcançassem pleno exercício da cidadania, como
preconizado pelo artigo 205 da Constituição Federal, o que se verá a seguir.
2 – DO DIREITO
2.1
– Da legitimidade do Ministério Público
O
Ministério Público possui legitimidade ativa para a propositura da presente
ação civil pública: presentes as hipóteses de lesão e ameaça de lesão a
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos relativos à Infância e
Juventude, está legitimado pelo artigo 129, inciso III da Constituição Federal
e artigo 210, inciso V do ECA.
2.2 – Da legitimidade passiva
Os
requeridos devem figurar no pólo passivo, na medida em que implementaram nas
unidades escolares o denominado programa de progressão continuada. O Estado de São Paulo através da
Deliberação CEE 9/1997, e o Município de
Várzea Paulista fundando-se na Lei Federal n. 9.394/96 e na Lei Municipal
n. 1.976/08 (doc. 30).
2.3 Da Competência
Versando
a presente sobre direitos e garantias fundamentais e situação de risco
vivenciada por crianças e adolescentes em
Várzea Paulista, competente esta Vara da Infância e Juventude local, nos
termos expressos do artigo 147, incisos I e II, c/c artigo 148, inciso IV, c/c
artigo 209, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
2.4 – Da violação a interesses especialmente
protegidos
Em
nível constitucional encontram-se, já de início, diversos dispositivos que
estão sendo absolutamente desconsiderados pelos requeridos no que tange
ao sistema em comento.
Dispõe
o artigo 3º da Constituição Federal, em seus incisos III e IV, serem objetivos fundamentais da República erradicar
a pobreza e marginalização e promover o bem de todos - o que, por certo, não
será possível sem que se garanta à população nível educacional mínimo efetivo (e não mera aparência de nível
educacional).
De
outra banda, ao tratar especificamente da educação em seu artigo 205,
estabelece a Constituição que “a
educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (grifamos).
O
dever do Estado em assegurar à criança e ao adolescente o direito à educação
foi também reiterado no tópico alusivo à família, à criança, ao adolescente e
ao idoso (artigo 227).
Estes
dois últimos dispositivos mencionados devem ser ainda balizados pelo inciso VII
do artigo 206, que estabelece ser um dos princípios do ensino a garantia do padrão de qualidade – princípio, aliás, reproduzido no
artigo 3º, inciso IX da Lei n. 9.394/96 (“Lei de Diretrizes e Bases da
Educação”).
Pede-se vênia, aqui, para traçar
algumas ponderações a respeito do conteúdo e alcance de tais dispositivos, e
seu descumprimento pelo sistema de progressão nesta sede impugnado.
O
primeiro ponto reside na disposição expressa, erigida a princípio do ensino, de que deverá haver garantia de padrão de qualidade.
Ora,
a Lei – in casu, a Lei Máxima – não
contém palavras inúteis. Ao apontar tal princípio, exige que o ensino
ministrado tenha padrão mínimo de qualidade, o que deve abranger não só o
conteúdo do que se ministra, mas também a metodologia
adequada, que permita efetiva
absorção daquele conteúdo pelas crianças e adolescentes – o que, como
demonstrado, não tem ocorrido nos níveis desejáveis.
O
outro ponto refere-se aos aspectos teleológicos do transcrito artigo 205.
Estabelece a Carta que a educação – dever do Estado - será promovida e
incentivada visando: a) o pleno
desenvolvimento da pessoa, b) seu
preparo para o exercício da cidadania e c)
sua qualificação para o trabalho.
Desnecessárias
maiores digressões quanto à constatação – óbvia – de que um sistema educacional
que conceda a um jovem um certificado de conclusão de 1º grau sem que tal jovem
tenha absorvido conhecimentos básicos de Língua Portuguesa – para ficar apenas
no aspecto mais gritante, pressuposto ao aprendizado das demais disciplinas – não está cumprindo o objetivo de
qualificação para o mercado de trabalho.
De outro turno, é consenso entre
profissionais das áreas de Educação, Psicologia e Ciência Política – para citar
apenas três – que o desenvolvimento pleno da pessoa e seu preparo para o
exercício da cidadania pressupõe o conhecimento de limites, pressupõe a idéia
de que uma sociedade justa é uma sociedade que premia os esforços (e não a
desídia), e pressupõe a idéia de que deverá haver tratamento desigual aos
desiguais, na medida em que se desigualam.
No
entanto, o sistema – frise-se, da forma
em que implantado, sem que aqui se queira questionar a validade, em si, da
progressão ou do chamado construtivismo – vai no sentido contrário ao dos ideais mencionados, e no sentido contrário aos objetivos acima
assinalados como “a” e “b”.
Um
sistema que transmita a um ser em desenvolvimento – não se pode descurar que
tratamos, aqui, de crianças e adolescentes – a idéia de que, sendo extremamente
dedicado, ou extremamente relapso, o resultado final será o mesmo (aprovação),
incute naquele ser uma visão de mundo deveras distorcida, porquanto, no futuro,
quer nas relações inter-pessoais, quer nas relações profissionais, prevalecerão
as situações em que o empenho é premiado e desídia punida (ou, ao menos, não
premiada). Está-se, pois, no sentido contrário
do pleno desenvolvimento humano.
Isto
tudo sem mencionar o efeito oposto, ou seja, o potencial desestímulo aos alunos
inicialmente aplicados, que poderão preferir o gozo das horas de folga apenas
em atividade de lazer, na medida em que forem constatando que os demais
companheiros de classe, que assim procedem, logram a mesma aprovação que
aqueles que se empenham durante todo o ano.
E
nem se argumente, nesta sede, como já se fez, que é necessário conscientizar o
aluno para que “estude para a vida, e não
para a prova”, e
que, portanto, o sistema não
deveria ser exigente quanto ao estudo.
Embora
seja de todo acertada a premissa, falsa a conclusão: lida-se, neste caso, não
com adultos formados, mas com crianças a partir de seis anos de idade, que
por certo precisam, ainda nesta fase inicial de desenvolvimento, ser exigidas, para corresponderem aos
estímulos.
As
mesmas conclusões anteriores se aplicam à questão do exercício da cidadania: se
em um ambiente de desenvolvimento de relações tão fundamental quanto a escola,
a criança ou adolescente absorve os conceitos de que quer ele se empenhe, quer
seja relapso e indisciplinado – quando não agressivo – colherá os mesmos frutos
que os alunos dedicados (aprovação), que espécie de cidadão estará sendo gestado?
A
isto tudo se soma ser um dos princípios da Administração Pública o da eficiência, estampado no artigo 37, caput da Constituição Federal.
E
por certo não se pode chamar de eficiente nenhuma ação estatal que, durando 8 (oito anos), permite que alunos
cheguem à etapa final sem conhecimentos
rudimentares do conteúdo ministrado, quando não sem saber ler ou escrever.
Poder-se-ia
chamar eficiente certo sistema educacional que, a título de exemplo, em oito
anos conseguisse fazer de seus alunos pessoas fluentes em uma língua
estrangeira. Que dizer, porém, de sistema que não tem conseguido os mesmos
resultados nem com a própria língua-mãe?
Em
sede infra-constitucional, o artigo 4º do ECA também estabelece ser dever do
Poder Publico assegurar o direito à educação, sendo certo que o artigo 6º do
mesmo diploma impõe que, na interpretação da lei, deverão ser levados em conta “os
fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e
deveres individuais e coletivos e a condição
peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento” (destacamos),
o que só vem a reforçar as ponderações acima lançadas quanto ao conteúdo das
disposições constitucionais que regem a matéria.
Neste ponto – alcance
dos princípios - não se pode descurar que em sede de interpretação (constitucional) vigora o princípio da efetividade: deve-se dar aos comandos
positivados na Carta (in casu, a
exigência do padrão de qualidade, e a exigência de que a educação deve atender
às finalidades de
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho) o sentido que lhes garanta maior efetividade. Neste sentido,
aliás, a lição do mestre português CANOTILHO:
“Este
princípio, também designado por princípio da eficiência ou da interpretação
efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional
deve ser atribuído o sentido que maior eficácia se lhê dê. É um princípio
operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e, embora sua
origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (THOMA) é
hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvida,
deve preferir-se a interpretação que reconheça a maior eficácia aos direitos
fundamentais).” [CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional, Almedina,
Coimbra, 1989, p. 162. Sobre o mesmo tema, veja-se ainda MIRANDA, Jorge, Manual
de Direito Constitucional, Coimbra Editora Ltda., 1983, tomo II, pp. 229 e
segs].
Tal princípio – da efetividade –
representa nada mais que consagração, em sede de interpretação constitucional,
do antigo brocado commodissimum est, id accipi, quo res de qua
agitur, magis valeat quam pereat (“prefira-se a inteligência dos textos que
torne viável seu objetivo, ao invés da que os reduz à inutilidade”).
2.5 – Da inexistência de invasão da esfera de
discricionariedade ou afronta à separação dos poderes
Neste
ponto, há que ressaltar ser claramente atribuição do Poder Executivo a escolha do
sistema educacional que pretende adotar.
Sem
embargo, compete ao Judiciário, enquanto guardião da Constituição, aferir se,
dentre a gama de opções, aquela eleita pelo Executivo encontra-se em
consonância com o ordenamento jurídico.
Trata-se
do controle de legalidade dos atos da Administração Pública.
No
caso em apreço, fica patente que o modelo adotado pelos requeridos está a ferir
disposições constitucionais e legais expressas, sendo de todo cabível, pois,
seu controle pela Autoridade Judiciária.
Não há margem para que o
Estado-Administração possa optar por realizar, nos campos da Educação e da
Infância e Juventude, apenas aquilo que reputa o “mínimo indispensável”.
Não se nega que o Executivo
disponha, em relação às decisões que impliquem em condução dos rumos da super-estrutura
estatal, dos critérios de conveniência e oportunidade. Este é, aliás, um dos
corolários da convivência harmônica entre os Poderes, bem como garantia
conferida ao Executivo para o bom desempenho de sua atividade-fim.
No entanto – e isto, em todos os
campos, infelizmente, tem sido corrente – aparentemente pretende o Estado, sob
o manto de tais critérios, poder fazer ou deixar de fazer o que bem entenda,
sem qualquer vínculo com a Lei. Olvida-se que em um Estado Democrático de
Direito se vive sob o Império da Lei.
É dizer, o Poder Executivo –
como, de resto, qualquer órgão que detenha uma parcela da soberania do Estado –
tem lá sua margem de eleição de critérios na forma de conduzir a coisa pública,
no que tange às atividades não vinculadas. Tudo, no entanto, deve ser balizado
pela Lei, e temperado com os critérios de razoabilidade e finalidade.
O Estado não existe como um fim
em si. Existe, apenas e tão somente – e este é conceito basilar de Ciência
Política – com a finalidade de prover o bem-comum.
Não por outra razão, diplomas –
constitucionais e legais – são editados com comandos dirigidos ao Estado -
Administração, que o compelem a tanto (a buscar, sempre, o bem-comum).
Assim, se o Poder Executivo, por
ação ou omissão, descumpre os comandos constitucionais e legais que lhe são
dirigidos – deixando de fornecer o ensino adequado às crianças e adolescentes,
ou fornecendo-lhes um modelo de ensino que não contempla o princípio do padrão de qualidade (artigo 206, inciso
VII da Constituição), nem os objetivos de desenvolvimento pleno da pessoa, seu
preparo para exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (artigo
205) – configurada está a situação de necessidade de intervenção de outro Poder
– in casu, o Judiciário, dotado de poder coercitivo, do monopólio da
violência.
No moderno conceito de Estado
Democrático de Direito se aplica a doutrina – já não mais recente - dos freios e contrapesos, que implica,
dentre outros pontos, justamente no acionamento de um dos Poderes quando outro
transborda de suas funções, ou se omite de seus deveres.
Por isso, fogem ao campo da
discricionariedade as medidas nesta sede pleiteadas. São medidas determinadas
pela Constituição e diplomas legais outros. E, em assim sendo, não há margem
para “opção”. Não está a bel prazer do Poder Executivo tomar – ou não –
medidas que contemplem o respeito aos direitos das crianças e adolescentes: a
isto está o Poder Executivo obrigado.
Sob o tão decantado manto dos
critérios de conveniência e oportunidade, tem o Estado-Administração se omitido
em cumprir comandos cogentes, e, não por outra razão, se encontram em situação
de extrema penúria a Educação, a Saúde e a Segurança do país.
Roga-se, assim, ao Judiciário,
apenas que determine que o Executivo faça nada mais que cumprir a Lei.
Ou,
sob uma outra ótica: se está comprovado que o modelo de progressão continuada
adotado está em absoluto conflito com as exigências constitucionais, aquele não
pode permanecer. Deverá ser substituído ou, ao menos, adequado, a fim de atender
ao que determina a Constituição.
2.6 – Dos
parâmetros a serem adotados
Como já ressaltado, a
opção por este ou aquele modelo educacional encontra-se na esfera da
discricionariedade administrativa.
No entanto,
pode e deve o Judiciário efetuar o controle de legalidade das opções do
Executivo, controle este que abrange também a eficiência e a finalidade, por
expressa disposição constitucional (artigo 37).
Muitas
são as formas de avaliação de desempenho de alunos, e mais variados os critérios
de aferição de mérito.
O
que tem ocorrido, porém, é que as formas ou critérios têm se revelado inócuas,
na medida em que não levadas em conta para a aprovação/reprovação.
Prevê
o artigo 24, inciso II, alínea “a” da Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
que a classificação nas etapas de ensino poderá ser feita por promoção para os alunos que cursaram, com
aproveitamento, a série ou fase anterior.
Tal
lei não define o que seria o aludido aproveitamento, mas o exige para a promoção.
À
falta de outro critério, parece bastante razoável se entender por
aproveitamento a absorção da maioria
do conteúdo ministrado.
Adotando-se
o critério de maioria simples – metade mais um – e com o natural “arredondamento”,
razoável que se imponha, como condição para promoção à série subseqüente, que o
aluno demonstre ter absorvido pelo menos 50% (cinqüenta por cento) do conteúdo
de cada disciplina ministrada, ou nota 5,0 (cinco) em escala de 0,0 (zero) a
10,0 (dez).
2.7 – Dos fundamentos para a concessão da tutela de
urgência
Demonstrada a
violação a interesses especialmente protegidos, mister que de imediato se
impeçam os efeitos danosos que poderão advir da manutenção da progressão
continuada – que tem sido, como frisado, mera promoção automática.
Há
prova da verossimilhança do alegado, consoante farta documentação juntada com a
inicial e supra mencionada.
Outrossim,
evidente o perigo de dano de difícil reparação: acaso só ao final concedida a
medida, previsível que por mais anos e anos jovens permaneçam freqüentando o
ambiente escolar, com a clara ilusão (para eles, para os pais e para a
sociedade) de que estão a se qualificar para o mercado, e a se desenvolverem
como pessoas e cidadãos, quando, em verdade, estão apenas recebendo certificado
vazio, que atesta conclusão de etapa da vida na qual não foi absorvido o quanto
era devido.
E
não há perigo de irreversibilidade.
O
sistema atual a todo tempo pode ser retomado, não sendo de se olvidar que o que
se pleiteia, em sede de cognição sumária, é não mais que retorno a critério de
avaliação que ao longo de décadas foi utilizado no Estado – e que ainda é
utilizado na maioria dos Estados brasileiros e em outros países.
2.8 – Considerações finais sobre os efeitos da tutela pretendida
É preciso
que fique claro que não se pretende, com a presente demanda, por fim à
discussão quanto ao modelo educacional a ser adotado e, tanto menos,
“solucionar” o estado de precariedade da Educação no Município de Várzea
Paulista.
Evidentemente,
efetiva melhoria nos níveis educacionais depende de profundas alterações no
tecido social e na estrutura estatal, tudo a demandar tempo, investimento,
planejamento e vontade política.
Também
é evidente que o retorno à necessidade de avaliação, com demonstração de
aproveitamento mínimo (50%) para aprovação, não significará o fim das mazelas
do sistema educacional.
Talvez,
num futuro – ao que parece, infelizmente distante - a realidade social
brasileira permita a implantação de inovações como a da progressão continuada,
acaso se entenda ser, mesmo, uma evolução. Não há ainda no Brasil, porém, nem
condições sócio-econômicas, nem estrutura da rede pública de ensino para tanto.
Ainda
não dispomos de salas-de-aula ocupadas por cerca de apenas dez ou doze alunos,
escolas com jornada em período integral – na qual atividades culturais,
esportivas e lúdicas concorrem com aquelas do ciclo regular – nem aprofundada
preparação, valorização e boa remuneração de professores.
Tampouco
dispomos daquela gama de profissionais de apoio, em número a contento, que
possam efetivamente acompanhar – de
perto, e não apenas esporadicamente - alunos que apresentem dificuldades de
aprendizado.
O
quadro médio e comum das famílias em Várzea Paulista (e no Brasil) não é, de
forma alguma - seja em relação à renda per
capita, seja em relação ao número de filhos por núcleo, seja em relação à
escolaridade dos pais, seja em relação às condições de moradia - o mesmo
daquele existente nos países que adotaram o modelo.
Por
isso, forçoso reconhecer que, antes de implicar qualquer avanço, a adoção da
progressão continuada – aqui, mera promoção automática – tem causado danos à
Infância e Juventude.
Assim, dois quadros podem ser
traçados, a partir do acolhimento – ou não – da pretensão nesta sede veiculada
– e conseqüente manutenção, ou não, do atual modelo.
O
acolhimento da pretensão, ao menos,
impedirá:
a) que
mais e mais jovens permaneçam sendo aprovados e recebendo certificados sem saberem ler ou escrever;
b) o
nefasto efeito sobre o caráter de seres humanos em formação, consistente na
absorção da idéia – de todo falsa – de que empenho
e desídia levam a um mesmo resultado;
c) o negativo impacto sobre os jovens
habitualmente estudiosos, que podem se sentir desestimulados, ao constatarem
que colegas de sala, que nada estudaram, nada aprenderam, e durante todo um ano
apresentaram quadro de indisciplina, são, ainda assim, promovidos à série
subseqüente juntamente com os demais;
d) que
permaneçam os professores reféns da indisciplina - e não raro violência –
potencializada com a ciência, pelo aluno, de que faça o que fizer, não será
reprovado, bastando para tanto seu comparecimento mínimo às aulas;
e) que
o Poder Público reduza os investimentos na área de Educação, a partir de
conclusões falsas, calcadas em estatísticas que maquiam o verdadeiro estado das
coisas;
f) que
alunos, pais, e a sociedade em geral, permaneçam ludibriados, aceitando o engodo
de que crianças e adolescentes agora têm um bom nível educacional – quando não
o têm;
g) que
alunos, pais, e a sociedade em geral, permaneçam ludibriados, aceitando o
engodo de que o sistema educacional prepara os jovens para o mercado de
trabalho, e colabora para o pleno desenvolvimento da pessoa e exercício da
cidadania – quando não o faz.
Em contrapartida, deveras preocupante o quadro acaso mantido
o modelo em vigor. A permanência da mera aprovação automática - que mascara
estatísticas e extirpa dos jovens as possibilidades mínimas de desenvolvimento,
exercício da cidadania e inserção no mercado de trabalho – traduz-se em futuro
aterrador, no qual crianças e adolescentes das escolas públicas serão tratados
como pessoas de segunda classe, pré-destinados a serem não mais que “Gamas” e “Ipsilons”
do sombrio universo de Huxley [Cf. Aldous Huxley,
Brave new world, London, Perennial
Books, 2010].
Em passagem altamente imagética, ao final de uma de suas mais
belas obras [Cf. Antoine de Saint-Exupéry, Terre des hommes (1939), trad. port. de
Rubem Braga, Terra dos Homens, 1a
Ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006, pp 138-140], o
aviador-jornalista-herói-aventureiro-escritor Antoine de Saint-Exupéry
narra suas impressões ao observar, em um vagão de terceira classe, pobres
trabalhadores poloneses forçados a deixar a França e retornar à terra natal. Em
meio a adultos que pareciam ter “perdido um pouco a qualidade humana”, avista
uma criança, vislumbrando nela “uma bela promessa de vida”, “um Mozart”, e
questiona: “protegido, educado, cultivado, que não seria dele?”. A melancólica
conclusão, no entanto, foi inevitável, ao verificar que, como os adultos,
aquela “promissora” criança seria também mandada para a “máquina de entortar
homens”, vendo o autor, em cada um daqueles homens, um “Mozart assassinado”.
Privar nossas crianças e adolescentes de um ensino digno - e,
em sentido oposto, abster-se de maciços investimentos em Educação, adotando um
sistema que, se reflete melhoria estatística, espanta por compactuar com um
analfabetismo funcional mesmo no ensino médio – nada mais faz que amputar-lhes
as mais básicas chances. Uma reedição, em outras bases, do “Mozart assassinado”
de Saint-Exupéry.
Enfim, não há figura mais adequada, a descrever o atual
posicionamento estatal perante os estudantes das escolas públicas, que não a do
duplipensar orwelliano [Cf. George
Orwell, 1984, London, Penguin UK, 2001]: sabe-se que o aluno nada aprendeu; ao mesmo tempo, acredita-se
piamente que aprendeu.
3 – DOS PEDIDOS
3.1 – Do pedido de antecipação dos efeitos da tutela
Presentes
os requisitos do artigo 273 do Código de Processo Civil, como demonstrado no
item 2.7, requer-se seja concedida a antecipação dos efeitos da tutela, de
forma a impor aos requeridos:
a) obrigação
de fazer, consistente em adotarem, nas escolas situadas em Várzea Paulista,
sistema de avaliação que exija dos alunos do ensino fundamental a comprovação,
em média anual, de absorção de pelo menos 50% (cinqüenta por cento) do conteúdo
ministrado, por matéria, facultando-se aos requeridos reterem o aluno que não
aferir tal percentual apenas na matéria em que não lograr êxito, ou em todas as
demais da mesma série, tudo sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil
reais);
b) obrigação
de não-fazer, consistente em não aprovar para a série subseqüente o aluno do
ensino fundamental que não aferir o percentual anual de absorção descrito na
alínea “â”, facultando-se aos requeridos promoverem a aprovação e promoção do
aluno à série subseqüente, desde que haja retenção na matéria ou matérias para
as quais não atingido o percentual anual mínimo referido, tudo sob pena de
multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por aluno que seja aprovado e promovido
contrariando os critérios mencionados.
3.2 – Do pedido definitivo
Por
todo o exposto, requer-se que, autuada esta com os documentos que seguem
anexos, seja distribuída e citados os requeridos para responderem
à presente ação civil pública e, querendo, contestá-la no prazo legal, sob pena
de revelia.
Requer-se
ainda seja julgada procedente, para condenar os requeridos a:
a) obrigação
de fazer, consistente em adotarem, nas escolas situadas em Várzea Paulista,
sistema de avaliação que exija dos alunos do ensino fundamental a comprovação,
em média anual, de absorção de pelo menos 50% (cinqüenta por cento) do conteúdo
ministrado, por matéria, facultando-se aos requeridos reterem o aluno que não aferir
tal percentual apenas na matéria em que não lograr êxito, ou em todas as demais
da mesma série, tudo sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais);
b) obrigação de não-fazer,
consistente em não aprovar para a série subseqüente o aluno do ensino
fundamental que não aferir o percentual anual de absorção descrito na alínea
“â”, facultando-se aos requeridos promoverem a aprovação e promoção do aluno à
série subseqüente, desde que haja retenção na matéria ou matérias para as quais
não atingido o percentual anual mínimo referido, tudo sob pena de multa de R$
10.000,00 (dez mil reais) por aluno que seja aprovado e promovido contrariando
os critérios mencionados.
Pugna-se
pela a produção de todas as provas em Direito admitidas, especialmente prova
testemunhal (rol a ser oportunamente apresentado), documental e pericial,
vistorias e inspeções judiciais.
Dá-se
à causa o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Várzea
Paulista, 12 de janeiro de 2009.
FAUSTO LUCIANO PANICACCI
Promotor de Justiça
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