12 de janeiro de 2012

Um desabafo e um desencargo de consciência.

* Nota explicativa: Hoje o fórum de Cananéia está melhor do que estava quando passei por lá. Mas ainda está longe de ser um ambiente adequado para o desempenho de um trabalho com qualidade de ânimo.

** Nota de alerta: A realidade enfrentada pelos juízes estaduais (que estão exercendo a Justiça que eu chamo de "Justiça Franciscana" ou de "Justiça Pé-no-Chão") é MUITO diferente daquela dos castelos de mármore da Justiça Federal e daquela da aristocracia togada de Brasília.



Referente ao RDO n. 2/2012 da DISE de Registro
          Avoquei o presente expediente.
          Inicialmente, ao examinar no dia 5 de janeiro de 2012 (também durante o plantão judiciário) o comunicado da prisão em flagrante de A e de E proferi decisão convertendo a prisão em preventiva.
        Depois, ao examinar os pedidos de liberdade provisória ou de aplicação de medida cautelar diversa da prisão formulados pela Defensoria Pública, indeferi as pretensões e mantive a custódia preventiva.
      Como sempre faço em todos os feitos, antes de proferir as decisões procurei examinar concreta e atentamente o caso, tentando compreender suas peculiaridades e particularidades (não adotando soluções meramente genéricas).
         Contudo, há determinados casos em que mesmo depois de decididos persistem eles sendo continuamente reexaminados na consciência do magistrado (e esse é inclusive um dos reflexos mais árduos do exercício da magistratura). O presente caso é um desses.
       Depois daquelas primeiras decisões continuei a refletir e a ponderar com cautela a situação concreta. Inclusive aguardei tempo suficiente a ordenar e sedimentar os pensamentos, de modo a evitar a adoção de medidas por mero rompante. Assim, somente avoquei os autos para proferir a presente decisão depois de alcançar a convicção de que a solução agora adotada é a que se encontra em consonância com a minha consciência.

         E a conclusão a que cheguei é a de que os autuados são merecedores de aguardar em liberdade o trâmite processual.
          Não é possível fechar os olhos para a realidade.
         Estou atualmente convencido de que o motivo principal para o crescimento da quantidade de crimes é o clima de corrupção que predomina no setor político e que a partir disso se espraia para todos os demais ramos da sociedade.
         Tornou-se corrente no Brasil a adoção da popularmente chamada "filosofia do malandro", pois se entende que somente os mais espertos (na concepção negativa do termo) possuem maiores chances de “vencer” na vida. Os adeptos dessa "filosofia" não medem esforços para alcançar artificiosamente os seus objetivos. Não respeitam o próximo, praticam atos de corrupção, mentem, enganam, utilizam a violência como instrumento, etc.
        E infelizmente a vida quotidiana demonstra diariamente que inúmeras pessoas que deveriam dar à sociedade exemplos positivos estão a passar exemplos de que atitudes amorais compensam financeiramente.
          Apenas para ficar em exemplos recentes, menciono as notícias de corrupção em diversos Ministérios do Poder Executivo da União (Transporte, Turismo, Agricultura, Esportes, Trabalho). E a sociedade assiste que o máximo que ocorre com tais pessoas é a perda provisória de um cargo político, sem que ocorra qualquer sanção criminal e, principalmente, sem que ocorra a necessária restituição aos cofres públicos (ao povo) do dinheiro subtraído.
          Ocorre que numa sociedade que está perdendo a capacidade crítica e a capacidade de se indignar com atos imorais (o que decorre diretamente da falência do sistema de ensino) o exemplo extraído desses episódios é o de que agir de modo ilícito no Brasil é compensador.
          Quem trabalha tentando melhorar o país vê suas forças se esvaírem em vão.
          Professores ficaram sujeitos a péssimos salários, à ausência de estrutura para apoio ao ensino, à ausência de material e recursos didáticos e até mesmo muitos acabam por sofrer física e psicologicamente com atos de barbárie praticados por alguns alunos. Os profissionais da saúde (médicos, enfermeiros, dentre outros) foram transformados em proletários da saúde, ficando sujeitos a remunerações indignas, horários de trabalho desumanos. Existem inúmeras pessoas trabalhando em condições análogas às de escravo, muitas vezes em decorrência de conduta abusiva de empresas que se constituem em gigantes de seus setores econômicos, sem que ocorra qualquer repressão efetiva pelo Estado. Os consumidores são diariamente aviltados por grandes e lucrativas empresas prestadoras de serviços públicos, sem que nenhuma atitude concreta e efetiva seja tomada pelos órgãos incumbidos da fiscalização (no máximo são aplicadas multas que se apresentam pífias diante da lucratividade proporcionada pela conduta irregular). Milhares de pessoas usuárias de serviços públicos ou conveniados morrem à espera de um atendimento médico ou de um remédio.
          Também os juízes e os servidores do Poder Judiciário sofrem diretamente com a malversação dos recursos públicos. Anos se passam sem reposição salarial de acordo com a inflação (e aqui se está apenas no plano da reposição da perda inflacionária, não se chegando sequer a cogitar de aumento real), o que faz com que o poder de compra vá ficando cada vez mais reduzido a cada dia que passa. O número de habitantes vem aumentando, o número de processos também e o quadro de servidores segue na contramão, ficando cada vez mais reduzido, pois não ocorre adequada e célere reposição sequer daqueles que se aposentam. Há também aqueles casos de condições desumanas de trabalho. Para ficar mais uma vez em um exemplo recente, este magistrado e os servidores lotados no fórum de Cananéia com as obras de reparos no telhado do prédio ficaram sujeitos a trabalhar em um ambiente insalubre, cheio de pó oriundo da obra, acumulados e empilhados em espaços reduzidos com as pilhas de processos (muitos dos quais bem antigos), desviando de goteiras nos dias de chuva, com todos os banheiros do fórum interditados pela necessidade de desligamento da caixa d’água. Para manter minimamente o atendimento dos casos urgentes, as audiências passaram a ser realizadas em um espaço cedido pela Câmara dos Vereadores, espaço que serve como ante-sala dos únicos banheiros do prédio (de modo que todos aqueles que estão no prédio ao precisar utilizar o banheiro precisam transitar pelo local em que se está realizando audiência).
          Para piorar o sentimento de impotência e de descaso das autoridades maiores, exatamente na época em que isso estava ocorrendo na Comarca de Cananéia o Conselho Nacional de Justiça esteve naquele município em razão do mutirão carcerário (ocasião em que estavam presentes servidores do CNJ e dois juízes representantes do mesmo órgão), realizando inspeção na cadeia pública. Este magistrado compareceu ao local e, embora fizesse pouquíssimo tempo que havia chegado para assumir interinamente o juízo, recebeu um “puxão de orelha” pelas más condições da cadeia. Todavia, as condições da cadeia estavam ainda melhores do que as do fórum e, em razão disso, fiz convite aos representantes do CNJ para que comparecessem ao fórum e constatassem que a situação do juiz e dos servidores conseguia ser ainda mais desumana do que a dos presos (e isso sem que juiz ou servidores tivessem cometido qualquer ilicitude para passar por tamanha provação e sofrimento). Os representantes do CNJ responderam que veriam se daria tempo de ir ao fórum. Aguardei então que comparecessem ao fórum, mas eles não foram.
          Esse episódio serviu para que eu pudesse ter uma noção mais próxima e concreta do elevado descaso estatal (especialmente do Conselho Nacional de Justiça), que demonstrou mais se preocupar com a mídia do que com a melhora efetiva da sociedade e da Justiça.
          E é certo que muitos outros exemplos poderiam ser dados.
          Diante desse quadro, é forçoso reconhecer que as coisas não andam bem no Brasil. Quase tudo está errado.
          É essa triste realidade política, jurídica, econômica e social que faz com que indivíduos que não tenham bases morais e éticas sólidas acabem enveredando por caminhos errados.
         Para descer mais especificamente à situação do tráfico de drogas, há alguns meses durante o interrogatório de um preso (no Foro Distrital de Pariquera-Açu) ele me disse uma verdade. Algo que seria cômico se não fosse trágico. Ele falou que como “todo mundo estava vendendo drogas”, também resolveu vender para complementar sua renda, só que ele acabou sendo um dos “azarados” que acabou preso.
          Passando agora mais diretamente ao caso do presente feito, está evidente que os indiciados resolveram enveredar pelo chamado “tráfico de esquina” também para complementar a renda de seus trabalhos lícitos, optando por realizar pequenas vendas de drogas por ser o tráfico algo que lastimavelmente está se tornando corriqueiro e que diariamente surgem exemplos de pessoas que enriquecem em tal ramo de atividade ilícita. Como muitos traficam, mas poucos acabam sendo os “azarados” que acabam presos, na mente desses pequenos traficantes surge a expectativa de que o pequeno risco compensa a potencialidade de lucro. E esse “pequeno risco” ganha força diante daqueles grandes exemplos de impunidade que se veem diariamente na política.
          É por isso que a cada traficante que é preso, muitos outros surgem em seu lugar, num círculo vicioso que nunca tem fim.
          E mesmo diante de todas as facilidades e estímulos para a traficância, os autuados do presente caso ainda mantiveram uma certa “ética”. Embora tenham errado e enveredado pela traficância, não se pode deixar de considerar que eles ainda assim escolheram atuar na venda de uma droga que não é das mais nefastas (maconha) e em pequena quantidade. Mais: ainda assim mantiveram as suas outras ocupações lícitas, não passando a se dedicar com exclusividade ao tráfico.
          Ou seja, mesmo podendo facilmente ampliar seus lucros e sua penetração no ilícito mercado de usuários de drogas com a diversificação das drogas vendidas, optaram por ficar apenas na venda de maconha, a qual embora também seja ilícita, tem efeitos que são menos nocivos do que as demais.
          Também optaram por apenas complementar suas rendas, não atuando de modo comprometido com o tráfico e nem integrando grandes organizações criminosas.
          E ao serem abordados pela autoridade policial, mesmo podendo negar a traficância (quando seria plausível até mesmo que restassem meramente acusados de posse de drogas para uso próprio, diante da qualidade e da quantidade da droga com que estavam), resolveram contar a verdade para os policiais que fizeram a abordagem e confessaram que iriam vender as porções de maconha. Portanto, agiram de modo correto ao perceber que haviam sido flagrados, tendo optado por contar a verdade, em nítida atitude de cooperação com a atividade policial (e que por consequência coopera também com a futura instrução criminal).
          Soma-se a isso que nenhum dos indiciados tem quaisquer outros apontamentos criminais em sua vida pregressa.
          Cabe acrescentar também que já transcorreu tempo de prisão suficiente a que consigam refletir sobre a gravidade e seriedade dos atos praticados, bem como das suas consequências.
         Diante de todos os elementos, não há dúvidas de que os indiciados ainda não enveredaram na criminalidade de modo irreversível, sendo amplamente plausível que nunca mais voltem a traficar ou a incorrer em qualquer outro crime.
          E novamente não se pode fechar os olhos para a realidade. As prisões brasileiras não contribuem para a ressocialização de ninguém. Quem sai da prisão e opta por viver uma vida correta o faz por vontade própria e não porque recebeu estímulo estatal ou social para tanto.
          Assim, tenho que não seria adequado manter os autuados num ambiente altamente deteriorador (pois o ambiente prisional tem regras próprias intrínsecas às esferas de poder paralelo e que corrompem as pessoas, deteriorando suas personalidades e mudando negativamente seus princípios de vida) se eles ainda têm condições de tornar a viver uma vida correta.
          Sendo a ressocialização o principal e mais nobre escopo da sanção criminal, reputo ser necessário que o magistrado esteja atento para priorizar a possibilidade de seu alcance nos casos em que ela ainda se faz possível. E a situação retratada no presente expediente se insere nisso. Uma nova e última oportunidade de viver em liberdade talvez seja o que falta para que os indiciados re-endireitem suas vidas e tornem a agir de modo socialmente produtivo e útil.
          E como a ressocialização  na verdade é o escopo mais importante de todos os sistemas criminais, encontra-se ela como elemento superior a quaisquer outras regras, sendo ela inspiradora inclusive de todo o arcabouço da Lei de Execução Penal.
          Isso porque em última análise é ela inerente à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil) e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com contribuição para o desenvolvimento nacional, para a redução da pobreza e da marginalização e para a promoção do bem de todos (artigo 3º, incisos I, II, III e IV, da CRFB).
          Desse modo, o exame sistemático e teleológico das finalidades da República Federativa do Brasil e de todo o sistema criminal (não somente brasileiro, como de todos os recantos do mundo), permite a compreensão de que diante de caso em que a ressocialização se apresenta não como uma mera promessa vazia, mas como uma possibilidade concreta, a liberdade deve ser prestigiada, sobrepondo-se à vedação contida no artigo 44 da Lei n. 11.343/06.
          De todo modo, na tensão entre o artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição e os artigos 1º, inciso III, e 3º, incisos I, II, III e IV, também da Constituição, para o caso concreto não restam duvidas de que devem ser prestigiados os valores inerentes à liberdade e à concreta viabilidade de ressocialização.
          Diante do exposto, com esteio nos artigos 1º, inciso III, e 3º, incisos I, II, III e IV, todos da Constituição da República Federativa do Brasil, ao tempo em que revogo o anterior decreto de prisão preventiva, concedo liberdade provisória aos indiciados A e E, vinculada ao comparecimento a todos os atos do processo e à não incursão em novos fatos criminosos, sem prejuízo da nova decretação de prisão preventiva caso venham a surgir novos elementos que a justifiquem.
          Expeçam-se alvarás de soltura clausulados.
          Ciência ao Ministério Público.
          Providenciarei diretamente a ciência à Defensoria Pública por intermédio de e-mail (xxxxx), nos moldes da recomendação emanada pela Corregedoria-Geral da Justiça.    
          Registro, 7 de janeiro de 2012.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Presidente do Plantão Judiciário












9 comentários:

  1. Prezado.
    Estive, recentemente, no fórum de Cananéia e ousei usar o banheiro (aquele que fica no pavimento térreo). Conclusão: total falta de privacidade porque o teto era aberto e o que se faz lá, ouvia-se no Cartório.
    Sem contar a completa falta de acessibilidade que o Estado tanto propagandeia mas que não se esforça para viabilizar, enfim, lastimável.
    Siga bem e firme. Não esmoreça, pois eu também ainda acredito nos bons cidadãos, não estás só.
    Abraços fraternais.

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  2. Caro Aytor,
    parabéns pelo Blog.
    Cheguei aqui por meio do Blog Amantes do Direito, da Michele.
    Passei a ler os textos e suas reflexões e fundamentos.
    Abraços
    Fernando M. Zaupa
    Promotor de Justiça em Campo Grande-MS
    Autor do Blog Considerando Bem
    www.considerandobem.blogspot.com

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    1. Muito obrigado Fernando!
      Também tenho acompanhado o seu blog
      e também o conheci por intermédio do
      blog da Michele.
      Abraço,
      Ayrton

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  3. Que tristeza nos esforçarmos tanto para passar num Concurso e nos deparamos com tamanha falta de respeito para aquele que se anula em prol de um objetivo, ou mais, de um sonho.
    Fiquei perplexa com tamanho descaso para com um Magistrado.

    Abs,

    Mirian

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  4. Triste mas verdadeiro. Justamente diante dessa dura realidade é que conhecemos quem realmente nasceu para o cargo. Dr. Ayrton, pelo que pude verificar o Sr. é "Nobre"!!!
    cruz.

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    1. Essa a dura realidade que não é singular, posto que outras Comarcas nos mais distantes rincões do País também padecem de omissões dos tribunais, cujo desmando também não interessa ao CNJ, não dá mídia!

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  5. Tudo isso no "maior" Estado do Brasil!!!
    Imaginem como devem ser os fóruns, as cadeias públicas etc nesse "brasilsão" .....Brasil sil sil sil sil

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  6. O "sarzedão" não tem goteiras, calor, cupins etc, tem?

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  7. E eu que pensava que o de Pinhal não tinha intalações adequdas!!!

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