4 de agosto de 2011

Devassa informal de dados bancários


Anexo Fiscal da Comarca de Registro
Autos nº 353/2009
Embargante:            XXXX
Embargada:             União (Fazenda Nacional)

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos, etc.
1. Relatório:
XXXX opôs embargos à execução fiscal movida pela União (Fazenda Nacional). Pretendendo a extinção do feito executivo ou a redução do montante, argumentou que a atuação fiscal e suas consequências não encontram respaldo legal, pois seria inaplicável retroativamente o artigo 11, § 3º, da Lei n. 9.311/96 com a redação que lhe deu a Lei n. 10.174/2001; foi equivocadamente empregado o artigo 42 da Lei n. 9.430/96; houve excesso de exação por ausência de apuração dos rendimentos isentos decorrentes de lucro distribuído por pessoa jurídica; a movimentação da conta bancária n. 26.155-6 pertence a terceira pessoa; e ainda pendia de julgamento recurso especial interposto no âmbito administrativo (fls. 2-16).
Em impugnação a União alegou que o não julgamento do recurso especial apenas teria o condão de causar a suspensão da exigibilidade do crédito e não a extinção da execução fiscal; a aplicação retroativa da nova redação do artigo 11, § 3º, da Lei n. 9.311/96 encontra amparo no artigo 144, § 1º, do CTN; a inexistência de excesso no lançamento e a não comprovação da titularidade dos depósitos tributados (fls. 268-272).
Houve réplica com especificação de provas pelo embargante (fls. 322-331). A União disse não ter provas a produzir (fl. 332).
Entre as fls. 333 e 437 instaurou-se discussão e apuração documental sobre o trânsito em julgado na esfera administrativa. À fl. 438 foi oportunizada ciência ao embargante quanto os documentos acostados pela União. 
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação:
Possível o julgamento antecipado, pois os fatos necessários à solução jurídica já se encontram incontroversos nos autos, não havendo necessidade de produção de outras provas (CPC, art. 330, I; e LEF, art. 17, parágrafo único).
Primeiramente, há de se observar que na esfera administrativa o procedimento se encontra definitivamente resolvido. É que o recurso especial teve seguimento negado (fl. 367), do que foi o contribuinte devidamente intimado pela via postal entregue em seu domicílio fiscal (fl. 371), nos moldes do art. 23, inciso II, do Decreto n. 70.235/72, que disciplina o processo administrativo fiscal. No mesmo sentido: STJ, EDcl no AgRg no REsp 963584/RS, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 20.8.2009. Especificamente nesse tocante, pois, rejeito a tese veiculada.
Quanto ao mais, porém, os embargos procedem em parte.
A execução fiscal tem por origem o tributo (imposto de renda de pessoa física) devido em decorrência da diferença de apuração referente à multa relativa à rescisão de contrato de locação (omissão de rendimento de aluguéis) e da omissão de rendimentos provenientes de depósitos bancários, com a incidência da multa legal. O exame atento dos embargos demonstra que apenas a omissão de rendimentos provenientes de depósitos bancários se encontra questionada de fato e de direito, de modo que não ocorrerá a extinção total da execução fiscal (como postulado nos embargos). Por isso a procedência será parcial, na medida em que a presente decisão determinará a exclusão dos valores decorrentes da omissão de rendimentos provenientes de depósitos bancários e da multa sobre ela incidente, de modo que remanescerá crédito a ser executado.
Pois bem.
É incontroverso nos autos que o procedimento fiscal teve início a partir de informações financeiras que, com a aplicação retroativa do art. 11, § 3º, da Lei n. 9.311/96, fez com que o fisco empregasse presunções do artigo 42 da Lei n. 9.430/96.
Não desconheço que o Superior Tribunal de Justiça se posicionou no sentido de ser legítimo tal modo de proceder da autoridade fiscal (STJ, REsp 1134665/SP, rel. Min. Luiz Fux, DJe 18.12.2009). Todavia, a meu sentir a questão é de índole constitucional e não se encontra ainda assentada pelo Supremo Tribunal Federal, o que deverá ocorrer, pois foi reconhecida repercussão geral ao tema no bojo do Recurso Extraordinário n. 601.314/SP (decisão de 22.10.2009).
E a interpretação que faço à luz da Constituição da República Federativa do Brasil é no sentido de ser inválida a utilização de informações protegidas por sigilo para se dar início à atuação fiscal. Explico:
Entendo que a questão da utilização de informações protegidas por sigilo não é de índole tributária ou fiscal (daí ser irrelevante para o caso a disposição do artigo 144, § 1º, do CTN). Cuida-se de tema decorrente do sistema financeiro nacional.
Independentemente da teoria que se adote sobre o fundamento material do sigilo financeiro (contratual, extracontratual, legal, decorrente do direito constitucional à intimidade, do segredo profissional ou do uso mercantil), fato é que o sigilo financeiro é integrante da disciplina do sistema financeiro nacional. E a Constituição reserva expressamente a lei complementar tal disciplina, consoante se infere do seu artigo 192, mesmo após a nova redação dada pela emenda constitucional n. 40.  
Tanto assim o é que no que toca ao sigilo das operações de instituições financeiras não apenas existe lei complementar a respeito, como ela prescreve de maneira clara a única hipótese em que está a autoridade fiscal autorizada a utilizar tais registros. Trata-se do artigo 6º da Lei Complementar n. 105/2001:
“As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente”.
Infere-se, portanto, que a utilização de informações protegidas por sigilo financeiro somente pode ocorrer no curso de processo ou procedimento administrativo fiscal (previamente instaurado) e desde que haja indispensabilidade da medida.
Aliás, por haver a necessidade de indispensabilidade, está-se diante de ato discricionário da autoridade administrativa. Logo, a autoridade que determinar a utilização dos dados deve, ainda, motivar sua decisão. Caso não haja motivação concreta e hábil a demonstrar a razoabilidade da medida, com o preenchimento dos requisitos dispostos na lei complementar (tal como ocorre na situação destes autos), a ilegalidade inegavelmente se torna presente. 
E motivação não significa apenas a indicação de algum fundamento que possa corroborar a conclusão da autoridade responsável pela decisão. Motivação é muito mais; traduz a necessidade de verdadeira exposição e argumentação, consubstanciada no efetivo enfrentamento da problemática, permitindo que se possa alcançar uma conclusão lógica, válida e em conformidade com o ordenamento jurídico. A motivação dos atos administrativos representa garantia inerente ao estado de direito. Como observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “a motivação é, em regra, necessária, seja para os atos vinculados, seja para os atos discricionários, pois constitui garantia de legalidade, que tanto diz respeito ao interessado como à própria Administração Pública; a motivação é que permite a verificação, a qualquer momento, da legalidade do ato, até mesmo pelos demais Poderes do Estado” (Direito Administrativo. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 1998, p. 175). A decisão administrativa destituída de motivação padece de vício de invalidade, haja vista que o requisito da motivação é de ordem pública, pois é intrínseco ao princípio da legalidade, trazido no art. 37, caput, da Constituição da República (“a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”). Também a Lei n. 9.784/99 (que prevê a nível federal as regras gerais para os procedimentos administrativos) apresenta em seu artigo 2º, caput (“a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”), a obrigatoriedade de observância aos princípios da legalidade e da motivação. Odete Medauar (Direito Administrativo Moderno. 9ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005), em preclara visão, observa que o dever de motivar os atos administrativos está implícito, ainda, nos dispositivos constitucionais que consagram a Democracia (CF, art. 1º, caput - “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...”), a publicidade (CF, art. 37, caput) e o contraditório (CF, art. 5º, LV - “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). Não se pode olvidar que o dever de motivação efetiva existe também em função do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), garantidor do direito à apreciação judicial; isso porque esse direito se mostra mais eficazmente assegurado em face da motivação, pois então juiz terá possibilidade de analisar a fundo a validade do ato administrativo, tendo pleno conhecimento acerca das razões de fato e de direito que levaram à sua prática. A motivação é, portanto, exigência constitucional, por ser pressuposto para a realização do direito fundamental à inafastabilidade da tutela jurisdicional.  
Resumindo essa primeira abordagem da problemática: para a utilização de dados protegidos por sigilo financeiro há a necessidade de atenção aos requisitos do artigo 6º da Lei Complementar n. 105/2001 (procedimento em curso e indispensabilidade da medida) e, ainda, que a decisão administrativa seja motivada.
Desse modo, entendo que o caso não é nem de aplicação retroativa ou não do artigo 11, § 3º, da Lei n. 9.311/96 com a redação que lhe deu a Lei n. 10.174/2001. Tal dispositivo ainda hoje é inválido, não apenas porque previsto em lei ordinária e versando sobre matéria reservada a lei complementar, como porque contrário à disciplina existente e constante da legislação adequada (lei complementar).  
É certo que nenhum direito (até mesmo fundamental) deve ser utilizado como escudo de intangibilidade. Porém, para atingir a descoberta do que está sendo escondido por debaixo do direito devem as autoridades estatais agir da forma validamente prevista pelo ordenamento jurídico. Se a legislação não atende adequadamente aos anseios da sociedade, deve ela ser alterada pelo processo legislativo adequado, não sendo possível que seja meramente desconsiderada. 
Permitir o descumprimento do procedimento previsto em lei complementar, violando também o comando constitucional, ainda que os fins sejam nobres, é algo incompatível com o regime adotado pela República Federativa do Brasil.
A Constituição é clara em preconizar que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, o que significa que todos (Estado, autoridades e quaisquer pessoas subordinadas à jurisdição brasileira) estão sob o império da Constituição e das leis.
A ideia de Estado de Direito (primado da lei), entre outros fundamentos, implica também a noção da autolitimitação dos meios invocados pelo Estado para a consecução de fins. Para atingir determinado fim, ainda que meritório e legítimo, o Estado não pode se valer de quaisquer meios. O meio, além de idôneo para a finalidade a que se presta, deve ser fiel à Constituição e às leis.   
Admitir-se a validade de qualquer meio desde que apto a atingir a finalidade que se busca é retroceder no cenário político-jurídico e ferir a ideia de Estado de Direito.  
Em remate: os fins não justificam meios inválidos perante a Constituição da República Federativa do Brasil.
Diante desse quadro, tenho que a atuação da autoridade fiscal que culminou com a “descoberta” da omissão de rendimentos provenientes de depósitos bancários foi ilegal e inválida perante a Constituição da República Federativa do Brasil.
Foram violados frontalmente o artigo 192 da CRFB e o art. 6º da Lei Complementar n. 105/2001. Por ausência de motivação prévia e concreta ao se autorizar a utilização das informações protegidas por sigilo bancário, resultam ofendidos os arts. 1º, caput, 5º, incisos LV e XXXV, e 37, caput, da CRFB, e o art. 2º, caput, da Lei n. 9.784/99. Em razão de haver sido utilizada prova ilícita no posterior processo administrativo restou violado o artigo 5º, inciso LVI, da CRFB. Por ter a autoridade contrariado o modo de proceder previsto com validade pelo ordenamento jurídico foi atingido o Estado Democrático de Direito, estabelecido pelo artigo 1º, caput, da CRFB.
3. Dispositivo
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTES EM PARTE os presentes embargos, extinguindo o feito com resolução de mérito (CPC, art. 269, inciso I), para o efeito de reconhecer a ilegalidade e a invalidade da atuação administrativa no que toca aos valores decorrentes da omissão de rendimentos provenientes de depósitos bancários e, por conseguinte, da multa aplicada sobre tais valores. Em consequência, e com esteio no artigo 741, inciso V, do CPC, reconheço presente excesso de execução, de forma a determinar a exclusão da execução fiscal das quantias referentes à omissão de rendimentos provenientes de depósitos bancários e da multa que sobre elas havia sido aplicada.
Em razão da sucumbência recíproca (pois o embargante formulou pedidos de extinção total ou parcial da execução fiscal – sagrando-se vencedor quanto a um deles), cada pólo arcará com metade das custas processuais, ficando compensados os honorários advocatícios, nos moldes do artigo 21, caput, do CPC e do disposto na Súmula nº 306 do Superior Tribunal de Justiça.
Atento ao disposto no artigo 475, inciso II, do CPC, decorrido o prazo para recurso voluntário, remetam-se os autos ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região para fins de reexame necessário.
Traslade-se cópia da presente decisão para os respectivos autos de execução fiscal.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpram-se as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
Registro, 18 de junho de 2010.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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